segunda-feira, 24 de agosto de 2009

Enciclopédia social de Moçambique: “J” como em juventude


O QUE é que vemos quando vemos jovens? A seiva da nação? Os rebentos da nação? Ou aqueles que garantem a continuidade da nossa epopeia? Em certa medida, Moçambique é uma epopeia que ainda não chegou ao seu fim. É uma epopeia que estamos a escrever, dia após dia, semana atrás de semana, de mês em mês, dum ano para outro. Quem sabe quando esta epopeia começou? Essa data parece-me arbitrária. Se dissermos que ela começou mesmo antes do colonialismo estaremos a aceitar os termos que outros usam para nos descreverem e estaremos, efectivamente, a conferir ao que os outros nos fizeram um certo fatalismo histórico que não se justifica. E não se justifica porque a nossa história é a nossa história. Outros foram entrando, fazendo das suas, mas nós fomos nos fazendo e refazendo.

Tem sido uma história empolgante com um roteiro de fazer inveja ao mais exímio dos realizadores de cinema. Recorda um pouco aquele teatro comunitário de São Tomé e Príncipe em que todos são actores dias a fio. Somos actores e público ao mesmo tempo. Antes, todavia, que me perca por aí volto à questão central que é de saber como interpretamos a juventude no nosso seio. Como? Em todo o mundo a juventude é uma fase que estabelece a continuidade duma comunidade de destino. Isto não significa, porém, que ela simplesmente incorpore os ensinamentos da infância e os preserve. Cada juventude tem a sua maneira de interpretar o que aprendeu da infância e torná-lo relevante para o futuro que quer para si. Alguma juventude chega mesmo a romper com certos ensinamentos para poder renovar a sociedade. Não existe uma sociedade tradicional no sentido restrito do termo. A tradição acompanha o novo na medida em que assegura a continuidade. Os cientistas sociais que falam duma oposição fundamental entre tradição e modernidade podem estar a perceber algumas coisas de forma bastante deficiente. A modernidade precisa da tradição para se estabelecer. Em todo o lado é assim.
Menos em Moçambique. A nossa juventude não é a continuidade. Nunca foi. A nossa juventude é a ruptura. Sempre. Foram jovens, por exemplo, que romperam com o sistema colonial. Foram jovens que fragilizaram – gosto deste termo – o projecto revolucionário “abrindo”. São jovens que colocam um grande ponto de interrogação sobre a viabilidade da nossa cultura abraçando as formas artísticas mais aventureiras de que há imaginação. Por detrás da aparente diversidade dessas formas artísticas está uma monotonia revoltante. Quando querem falar de amor usam o hip-hop; quando querem falar mal do governo usam o hip-hop; quando querem falar do prazer da vida usam o hip-hop; quando querem introduzir inovações na nossa música usam o hip-hop. Enfim, a nossa juventude, de calças gigantes usadas na angústia permanente de perderem de vista a cintura para sempre – aquelas calças metem-me tanta pena – ela anuncia tempos uniformes feitos da amplificação de coisas em que a estética se perde no conteúdo.
Portanto, o que estou a dizer é que a nossa juventude tem a característica singular de não representar a continuidade. Há razões profundas por detrás disto. A principal tem a ver com o estatuto normativo da nossa cultura. É que para que alguém seja a continuidade de seja o que for é necessário que essa coisa exista. Ora, a nossa epopeia é uma história de começos. Estamos sempre a começar de novo. Quem luta pela continuidade, e perde, são os mais velhos. Eles querem segurar o tempo, lamentam os tempos lá idos que eles próprios, quando ainda jovens, tudo fizeram para inviabilizar. Ah, o tempo colonial! Ah, o tempo de Samora! Ah, o tempo de Chissano! Daqui a alguns anos havemos de ouvir também “ah, o tempo de AEG!”. Mas na hora foi “suka xikolonyi”, “é outra vez o barbudo que está a falar?”, “deixa-andar” e “insaciável”. Um dos maiores desafios que enfrentamos na construção duma nação moçambicana consiste, de certeza, no estabelecimento duma rotina histórica suficientemente atraiente aos olhos dos nossos jovens para eles apostarem na sua preservação. A única condição que ela deve satisfazer é não precisar das mãos dos jovens, pois essas estão ocupadas a segurar as calças que caiem...
Elísio Macamo-Sociólogo, nosso colaborador

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