Elisio Macamo
AGORA começa a recta final. Vou fechar a série com o último modo de inteligibilidade que gostaria de propor como abordagem ao nosso mundo. Trata-se do modo estrutural de inteligibilidade. É um pouco difícil distingui-lo do funcional. Na verdade, nas ciências sociais a tendência é de utilizar os dois modos juntos. Existe, por exemplo, uma abordagem teórica bastante forte na sociologia e na antropologia que se chama estrutural-funcionalista. A dificuldade de distinção vem do facto de que a ideia dum todo composto de partes que se relacionam com o todo através da função pressupõe a ideia duma estrutura. O todo precisa de ser pensado como uma estrutura, isto é como algo integrado que fica de pé ou cai em conjunto. É por isso que achei interessante introduzir este modo com uma reflexão sobre a noção de “unidade”. Aviso, porém, que o que vou dizer mais adiante vai ser um pouco difícil de tragar.
Com efeito, a noção de “unidade” tem algo de estrutural. Transmite a ideia de integração, mas uma integração necessária e sem a qual tudo ruiria. O que quero dizer e vai ser difícil de tragar é que a noção de “unidade” me parece um conceito político muito mau. Eu tenho medo dele. Se tivesse essa prerrogativa mandava riscá-lo do nosso diccionário político. É que pressupondo ele uma necessidade coloca vários constrangimentos à expressão, à emissão de pontos de vista, à crítica e mesmo à acção. A noção de “unidade” tem um papel intermediário entre algo quase sagrado que precisa de ser defendido a todo o custo e o que as pessoas dizem, pensam e fazem no seu dia a dia. Um exemplo claro do que estou a dizer é a nossa experiência do período imediatamente a seguir à independência. A coisa quase sagrada que tínhamos naquela altura não era exactamente a nossa independência, mas o projecto que certos indivíduos tinham para o país. O recurso à noção de “unidade” tinha naquelas circunstâncias como objectivo principal preservar a integridade desse projecto.
É assim que foram criminalizadas várias formas de estar na vida: ser individualista, obscurantista, supersticioso, burguês, religioso, etc. Uma vez que estas formas de estar na vida podiam constituir alternativa ao projecto elas apresentavam-se como uma ameaça. O recurso à noção de “unidade”, então, tinha um papel de disciplinarização com toda a lactitude arbitrária que conceitos elásticos trazem consigo. Em certa medida, a determinação do que punha em perigo a “unidade” era prerrogativa de apenas alguns indivíduos. O que punha em perigo a “unidade” era o que esses indivíduos diziam pôr em perigo a “unidade”. Vemos, portanto, um potencial totalitário e autoritário no uso desta noção. E totalitarismo e autoritarismo são incompatíveis com a nossa emancipação individual.
O leitor vai perguntar agora o que devemos fazer. Vamos mandar a unidade nacional às favas só porque um sociólogo qualquer chegou à conclusão de que o uso dessa noção encerra um potencial autoritário e totalitário? Vamos deixar o país à mercê de forças centrífugas só porque alguém que fala a partir de nuvens teóricas chegou à conclusão de que a emancipação individual é mais importante do que o bem-estar colectivo? Como vamos construir uma nação una e coesa sem unidade? Vamos prescindir desse projecto só porque alguém precisava de escrever um texto no jornal e nenhuma outra ideia lhe ocorreu senão mandar vir com a “unidade”? São perguntas pesadas que de certeza precisariam de páginas sobre páginas para serem respondidas de forma adequada. Felizmente, não disponho dessas páginas.
Eu acho que o truque devia ser outro. Ao invés de apregoar e pregar a necessidade de “unidade nacional” os nossos chefes deviam dar ao povo razões para valorizarem essa “unidade nacional”. Perguntas pesadas, resposta simples. O desafio não é de obrigar as pessoas a serem unidas; o desafio é de convencer as pessoas a investirem na unidade nacional. Ou por outra, devíamos partir do princípio de que se temos forças centrífugas, se as pessoas não alinham com o projecto de “unidade nacional”, enfim, se as pessoas têm dúvidas, então é porque ainda não conseguimos lhes dar bons argumentos a favor da “unidade”. É bem possível que as pessoas vejam esse discurso como o que ele é na verdade: um discurso. E pior: um discurso de poder. O truque, portanto, é dar razões às pessoas para alinharem.
AGORA começa a recta final. Vou fechar a série com o último modo de inteligibilidade que gostaria de propor como abordagem ao nosso mundo. Trata-se do modo estrutural de inteligibilidade. É um pouco difícil distingui-lo do funcional. Na verdade, nas ciências sociais a tendência é de utilizar os dois modos juntos. Existe, por exemplo, uma abordagem teórica bastante forte na sociologia e na antropologia que se chama estrutural-funcionalista. A dificuldade de distinção vem do facto de que a ideia dum todo composto de partes que se relacionam com o todo através da função pressupõe a ideia duma estrutura. O todo precisa de ser pensado como uma estrutura, isto é como algo integrado que fica de pé ou cai em conjunto. É por isso que achei interessante introduzir este modo com uma reflexão sobre a noção de “unidade”. Aviso, porém, que o que vou dizer mais adiante vai ser um pouco difícil de tragar.
Com efeito, a noção de “unidade” tem algo de estrutural. Transmite a ideia de integração, mas uma integração necessária e sem a qual tudo ruiria. O que quero dizer e vai ser difícil de tragar é que a noção de “unidade” me parece um conceito político muito mau. Eu tenho medo dele. Se tivesse essa prerrogativa mandava riscá-lo do nosso diccionário político. É que pressupondo ele uma necessidade coloca vários constrangimentos à expressão, à emissão de pontos de vista, à crítica e mesmo à acção. A noção de “unidade” tem um papel intermediário entre algo quase sagrado que precisa de ser defendido a todo o custo e o que as pessoas dizem, pensam e fazem no seu dia a dia. Um exemplo claro do que estou a dizer é a nossa experiência do período imediatamente a seguir à independência. A coisa quase sagrada que tínhamos naquela altura não era exactamente a nossa independência, mas o projecto que certos indivíduos tinham para o país. O recurso à noção de “unidade” tinha naquelas circunstâncias como objectivo principal preservar a integridade desse projecto.
É assim que foram criminalizadas várias formas de estar na vida: ser individualista, obscurantista, supersticioso, burguês, religioso, etc. Uma vez que estas formas de estar na vida podiam constituir alternativa ao projecto elas apresentavam-se como uma ameaça. O recurso à noção de “unidade”, então, tinha um papel de disciplinarização com toda a lactitude arbitrária que conceitos elásticos trazem consigo. Em certa medida, a determinação do que punha em perigo a “unidade” era prerrogativa de apenas alguns indivíduos. O que punha em perigo a “unidade” era o que esses indivíduos diziam pôr em perigo a “unidade”. Vemos, portanto, um potencial totalitário e autoritário no uso desta noção. E totalitarismo e autoritarismo são incompatíveis com a nossa emancipação individual.
O leitor vai perguntar agora o que devemos fazer. Vamos mandar a unidade nacional às favas só porque um sociólogo qualquer chegou à conclusão de que o uso dessa noção encerra um potencial autoritário e totalitário? Vamos deixar o país à mercê de forças centrífugas só porque alguém que fala a partir de nuvens teóricas chegou à conclusão de que a emancipação individual é mais importante do que o bem-estar colectivo? Como vamos construir uma nação una e coesa sem unidade? Vamos prescindir desse projecto só porque alguém precisava de escrever um texto no jornal e nenhuma outra ideia lhe ocorreu senão mandar vir com a “unidade”? São perguntas pesadas que de certeza precisariam de páginas sobre páginas para serem respondidas de forma adequada. Felizmente, não disponho dessas páginas.
Eu acho que o truque devia ser outro. Ao invés de apregoar e pregar a necessidade de “unidade nacional” os nossos chefes deviam dar ao povo razões para valorizarem essa “unidade nacional”. Perguntas pesadas, resposta simples. O desafio não é de obrigar as pessoas a serem unidas; o desafio é de convencer as pessoas a investirem na unidade nacional. Ou por outra, devíamos partir do princípio de que se temos forças centrífugas, se as pessoas não alinham com o projecto de “unidade nacional”, enfim, se as pessoas têm dúvidas, então é porque ainda não conseguimos lhes dar bons argumentos a favor da “unidade”. É bem possível que as pessoas vejam esse discurso como o que ele é na verdade: um discurso. E pior: um discurso de poder. O truque, portanto, é dar razões às pessoas para alinharem.
ELISIO MACAMO-Sociólogo in noticias 04/09/2009
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